Nos idos da década de 80, havia promotor de Justiça que afirmava, em notícias de jornal, que a aprovação dos projetos da reforma penal de 1984 poria milhares de presos nas ruas, com alto risco à segurança pública. Tratou Francisco de Assis Toledo, Manoel Pedro Pimentel, Miguel Reale Junior, Ricardo Antunes Andreucci, Rogério Lauria Tucci, René Ariel Dotti, Jair Leonardo Lopes e Sergio Marcos de Moraes Pitombo, entre outros, como se fossem juristas sem responsabilidade quanto aos destinos da sociedade.
A estratégia vingou. Esse promotor público fez carreira pública em cargos do Executivo, depois bem se sucedeu no Legislativo. Aquelas entrevistas apocalípticas lhe renderam votos e apreço dos arbitrários da Justiça Penal. Seu discurso fundava-se nas consequências das alterações no sistema de penas, no Código Penal e na Lei de Execução Penal. Tais efeitos nefastos nunca ocorreram, mas esse discurso do medo dificultou o processo legislativo dos projetos, não há dúvida.
O tempo mostrou que ele não tinha apreço pelos presos, nem pelo sistema penitenciário. Biografias não guardam, tão só, a altura dos cargos, mas os atos que o indivíduo praticou no exercício destes. E algumas pessoas guardam na memória a distinção entre aqueles homens públicos que respeitaram, ou não, os direitos universais.
Quarenta anos depois, nos jornais desta semana, encontra-se similar estratégia ad terrorem no sentido de que reconhecer a suspeição do juiz Moro seria pôr fim a diversos processos judiciais da denominada operação "lava jato" e, por consequência, trazer impunidade para casos de corrupção.
Essa linha de manifestação saiu de promotor público também, o qual não se constrange em falar à imprensa, mesmo com a divulgação de suas mensagens a combinar atos nos processos criminais com o magistrado, sabidamente inclinado a perseguir e a condenar os réus.
A reiteração do estratagema por si só impressiona, porque imprensa e sociedade — hoje, com as redes sociais e a internet — ainda caem nessas falácias, sob a aura de que as questões jurídicas a priori seriam complicadas, distantes do real. Dizem alguns, mas não se pode acreditar, que ministros do Supremo Tribunal Federal poderiam se sensibilizar com essa argumentação e estariam dispostos a inaugurar jurisdição penal das consequências.
Na verdade, a propalação dessa espécie de pensamento indica as dificuldades ainda existentes quando o tema a ser debatido se mostra a imparcialidade judicial. Tudo se faz para evitar o reconhecimento da suspeição com medo de se machucar a imagem da Têmis. Vale mais o espírito de corpo do que a justiça do caso. Quer se fugir da declaração da perda da neutralidade judicial porque a suspeição de juiz acarretaria descrédito quanto a essa face do poder estatal (artigo 2º da CR).
Desde a Grécia Antiga, os ideais de justiça impedem essa visão hipócrita nos julgamentos. Existem categorias simples que importam mais do que as consequências da decisão. Ao povo interessa o julgador dizer o certo e o errado, o legal e o ilegal, o justo e o injusto.
No âmbito da jurisdição criminal, encontra-se em dissonância da lei e da Constituição adotar, como razão de decidir, motivação distante da certeza quanto a ocorrência do fato e da tipicidade normativa — características valiosas também para o processo penal e para a apreciação das questões de suspeição (artigo 5º, II e XXXIX, c.c. artigo 93, IX, da CR).
A bem da verdade, em regime democrático e mais evoluído no plano do reconhecimento dos direitos individuais, nem sequer se poderia aceitar funcionário público bradar pelos riscos de decisão penal, sob a desculpa de temores injurídicos, em detrimento do justo (artigo 37, da CR).
Não há corrente utilitarista que consiga defender que prisões arbitrárias, processos judiciais nulos e sofrimento de centenas de pessoas possam se justificar, apenas porque parte da classe média — arredia a confessar pontos na carteira de motorista e a pagar contribuição previdenciária de empregados domésticos — resolveu hastear a bandeira contra a corrupção.
Ideal para o país manter o melhor padrão do Estado de Direito (artigo 1º da CR), ao respeitar a legalidade antes de tudo (artigo 5º, II, da CR). Os réus, prejudicados por atuação parcial de juiz criminal, têm direito de ver declarada a suspeição (artigo 5º, XXXV, da CR) e de defender a inocência (artigo 5º, LVII, da CR) em devido processo penal a contar de contraditório real (artigo 5º, LIV e LV, da CR).
Nos próximos dias, veremos importantes capítulos da história brasileira e qual grau de nossa consciência em relação à dignidade humana nos julgamentos que ocorrerão (artigo 1º, III, da CR). Cada magistrado há de lembrar a missão constitucional do Poder Judiciário de construir sociedade livre, justa e solidária, sem preconceito contra acusados em processo-crime (artigo 3º, I e IV, da CR).
A postura ética do juiz de Direito, ou do ministro de corte, não se mensura pelo pretenso talento de judicar sem anular processos judiciais ilegítimos, mas pela coragem de aplicar a lei a casos concretos, sem medo de reconhecer erros e vícios processuais, ou fobia das críticas do público.
Todos sabemos que a jurisdição penal das consequências pode ser considerada a mãe protetora da Justiça arbitrária.
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