Foi, a contar dos anos 90, que se viram os esforços legislativos para encontrar direito penal com menor rigor punitivo e processo penal de caráter consensual. O crescente número de encarcerados e a perspectiva de a Justiça Penal padecer com excesso de casos contribuíram para a tendência, de lá para cá. Os crimes patrimoniais, em especial, o crime de estelionato, acabaram impactados por manifestações de arquivamento de inquérito policial, baseadas na dicotomia fraude penal/civil, com o fim de empurrar os conflitos à jurisdição civil.
Desde aquele tempo, transacionar tornou-se o lema para os crimes de menor potencial ofensivo. E, como se podia conjecturar à época, a burocultura judicial fez dos acordos a regra, algumas vezes sem muito cuidado quanto ao fato, tipicidade e autoria da infração penal. Imitou-se o pior da experiência norte-americana, com a massificação de tais acordos nos juizados especiais criminais e, mais tarde, nas colaborações processuais penais. Satisfizeram-se objetivos de velocidade na solução de controvérsias penais, bem assim de redução de instruções criminais e de sentença de mérito.
Mostra-se inegável um dos efeitos dessa política criminal: esvaziou-se a eficácia de determinados tipos legais - e.g., os crimes contra a honra, as infrações penais contra a propriedade industrial e a concorrência desleal, dentre outros.
No crime de estelionato (art. 171, do CP), as incongruências surgiram das mãos do legislador da oportunidade com as alterações do tipo delitivo. Criou-se a exagerada reprimenda do parágrafo 2º-A (art. 171, parágrafo 2º-A, do CP - alterado pela lei 14.155/21), em razão do ardil alicerçar-se na obtenção de informações fornecidas pela vítima, ou terceiro, por meio de redes sociais, contatos telefônicos, envio de correio eletrônico fraudulento, ou outros meios análogos. Previu-se a pena de 4 a 8 anos e multa - pena mínima igual à do crime de roubo (art. 157, do CP), o que denota a assimetria da estrutura do tipo em análise e a desproporcionalidade das reprimendas na lei penal.
De outro lado, estabeleceu-se a necessidade da representação (art. 39, do CPP), para este crime (art. 171, parágrafo 5º, do CP - alterado pela lei 13.964/19), salvo as hipóteses de o ofendido apresentar-se a Administração Pública, criança ou adolescente, pessoa com deficiência mental, ou maior de 70 anos.
Cumpre tecer algumas críticas à imposição desse ônus da representação às vítimas. Tal dispositivo legal parece desconectado da realidade de parcela relevante de consumidores brasileiros, os quais não encontram, na lei específica (lei 8.078/90), tutela jurídica que os proteja das fraudes atinentes a bens e serviços.
Muitas vezes, nem são os consumidores que têm ciência própria da fraude, mas, órgãos públicos, associações, jornalistas e integrantes do Ministério Público que descobrem os ilícitos e, assim, pedem a apuração de materialidade e autoria dos crimes.
Em escala nacional, diante da simplicidade das pessoas que sofrem com os esquemas fraudulentos na comercialização de bens e prestação de serviços, não se pode exigir da polícia judiciária, ou do acusador público, o dever de coletar, uma a uma, as representações penais para conseguirem dar andamento às persecuções penais.
As atividades de plataformas digitais de venda de produtos - estrangeiras, em principal - podem contribuir para a proliferação de fraudes, cuja responsabilização penal constitui verdadeiro interesse público de proteção à ordem econômica (art. 170, da CR).
Assim, o prisma de privatizar a persecução penal do estelionato, a contar da representação penal, exibe-se em sentido contrário ao que precisa a sociedade do consumo.
O direito penal serve, sim, à punição de crimes contra a propriedade e o poder-dever de punir estatal não merece ver-se tolhido pela equivocada alteração legislativa e pela conveniência prática de diminuir procedimentos no sistema criminal. Cabe proteger milhares de pessoas, alvo de estratagemas ardilosos que lhes ferem o patrimônio, ainda que ínfimo. Mal-informados, pobres e sem possibilidade concreta de agir, diante de estelionatos, eles têm direito de encontrar guarida a partir da simples comunicação da ocorrência dos crimes.
Em palavras simples, o surgimento de empecilhos procedimentais - como, a representação no prazo de 6 meses - tira das pessoas humildes tutela jurídica essencial, a qual há de se considerar como inafastável dever do Estado.
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