Há pessoas que, mesmo sem conhecer, de tanto ler e admirar os textos, nos sentimos íntimos. Jamais encontrei António Manuel Hespanha, nem sequer havia visto uma fotografia, quando me deparei com a notícia sobre a morte do professor e jurista português, no último dia 1º de julho.
Da longa e importante bibliografia, o encanto nasce no começo da década de 90, quando ele lança os livros Justiça e Litigiosidade: história e prospectiva e Poder e Instituições na Europa do Antigo Regime: coletânea de textos, ambos publicados pela Fundação Calouste Gulbenkian. Era tempo em que se estudava história do Direito, com afinco na graduação e no pós-graduação na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Sem as fontes históricas, não se apresentava seminário, não se escrevia trabalho acadêmico.
Mais do que obrigação estudantil, aqueles temas eram importantes, porque a geração de alunos, formados logo depois da Constituição de 1988, tinha muito em mente a questão do acesso à Justiça, como direito individual (art. 5o, XXXV, da CR), e as implicações do aumento da litigiosidade para o Judiciário. Debatiam-se naquele momento, por exemplo, as consequências do incremento dos direitos do consumidor (lei 8.078/90) para a burocracia da Justiça.
Também, existia interesse na história do direito português para se contrastar o sistema jurídico brasileiro com a Common Law, tão bem descrita no livro de John Gilissen Introdução Histórica do Direito, outra bíblia na mão dos estudantes de então. Queria-se a origem do pensamento jurídico brasileiro para negar a importação de institutos jurídicos - projeto fracassado em todos os sentidos, em especial, no direito processual pátrio que se rendeu ao pragmatismo à norte-americana que de lá para cá se firmou (v.g., no processo penal, da transação do Juizado Especial Criminal (lei 9.099/95) à colaboração processual (lei 12.850/13)).
António Manuel Hespanha nos mostra, noutra vertente de suas pesquisas, a diferença da monarquia lusitana para as demais monarquias europeias do Ancien Régime, ao explicitar que a sociedade portuguesa tinha outros mecanismos de controle, não só o estatal, mas, mediante a atuação da Igreja, das câmaras e dos senhores, o que era reconhecido pelos reis e vingou até o período pombalino. Tal perspectiva revolucionou o estudo de história ocidental, ao trazer a revisão da noção do Estado centralizador daquele período.
Desde este começo surgia uma característica fundamental de António Manuel Hespanha: o jurista a clarear os conceitos históricos; a desvendar as particularidades do Direito e das práticas de Justiça para aprimorar a pesquisa histórica; a se profundar nas obras jurídicas do passado (de direito canônico, inclusive) para compreender melhor a estrutura social e respectivo funcionamento.
Muitas obras vieram depois. Em Cultura Jurídica Ocidental convida a pensar na importância do direito europeu nos dois últimos milênios. Vê a influência dos ordenamentos jurídicos e da doutrina daquele continente sobre a América Latina, mas encontra as diferenças e novas perspectivas que abraçam problemas originais da região. O livro obteve grande sucesso no Brasil, até porque voltado a entender o direito nacional.
Cativa o leitor afeto à teoria geral O Caleidoscópio do Direito - O Direito e a Justiça nos dias e no mundo de hoje, no qual escreve, a partir das visões de Jüngen Habermas e Niklas Luhmann, sobre a norma jurídica, bem assim sobre vigência como consenso comunitário reflexivo. Traz, assim, a relevância da interpretação e do direito aplicado. Um texto curioso para o observador atento do nosso STF.
A notícia do falecimento levou muitos alunos a escreverem sobre o mestre. Dezenas de manifestações em Portugal – e até mesmo aqui – de agradecimento pela forma com que ele ensinava, pelo modo como convidava à reflexão e por sua maneira única de ser. Este carinho dos discípulos denota a pessoa por trás da obra, a qual corresponde àquela criada por minha imaginação.
Num tempo de tanta competição, de superficialidade e pressa, a comoção pelo passamento do jurista, que modificou o pensar sobre a História, indica esperança no estudo do Direito, com consciência do poder transformador que este tem sobre a sociedade.
No mais, tão somente, Fernando Pessoa pode, em poesia, sintetizar o que admiradores pensam sobre o indivíduo, o único António Manuel Hespanha: “Mestre, só seria como tu se tivesse sido tu”.
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