No Supremo Tribunal Federal, encontra-se em julgamento o recurso extraordinário 1.235.340/SC, no qual se debate a eventual possibilidade jurídica de se tornar automática a prisão do condenado, no procedimento especial do Júri, logo após o veredito condenatório dos jurados, explicitado na sentença judicial (art. 492, do CPP).
Na argumentação em prol dessa novíssima execução antecipada da pena surgem aspectos empíricos e argumentos jurídicos. Sempre se pode ver com ceticismo essas coletas de dados, como bem observou Darrel Huff, no clássico How to lie with statistics, publicado em 1954. Aliás, o interesse pela matemática permite lembrar quão diferentes podem ser as conclusões a contar de mudanças singelas de premissas objetivas, sem falar da ideia do falso positivo na probabilidade.
Mas, aqui, o limite da crítica se circunscreve à questão constitucional. O processo penal é instrumento de proteção da liberdade jurídica do indivíduo (artigo 5º, II, da CR). A regra no direito brasileiro se mostra a liberdade (artigo 5º, LIV e LVII, da CR). O indivíduo só pode perdê-la por decisão judicial fundamentada em lei (artigo 5º, LXI, da CR). No Judiciário, não se criam razões para prender (artigo 5º, LV e LVI, da CR), tão só o legislador, que, em situações fáticas excepcionais, pode prever hipóteses estritas de prisão antes do trânsito em julgado — se acatar as premissas da Lei Maior.
Ao se ler, na Constituição, que ninguém se encontra obrigado a fazer, ou deixar de fazer, a não ser em virtude de lei, indica-se que o indivíduo defende-se também na persecução penal, para que investigação criminal, ação penal, recursos e execução da pena cumpram, de forma estrita, o que prescrevem as leis processuais penais (artigo 5º, II e LIV, da CR). E, caso condenado por fato típico, que a medida da pena seja precisa consoante o que previsto no direito material (artigo 5º, XXXIX, da CR). Quer dizer, o obrigado a fazer, conforme o direito positivado, conserva parcela residual de liberdade, resguardada pela lei.
O juiz penal não se encontra a serviço do Estado para punir. Quem pensa desse modo mal compreendeu o sistema de proteção dos direitos individuais (artigo 5º, da CR) e o significado impositivo da legalidade para o Estado (art. 37, da CR). Titular de promover o poder-dever de punir surge do Ministério Público (artigo 129, I, da CR). O magistrado analisa a acusação para aferi-la sob dois prismas: (i) se concernente com a verdade (verdade aproximativa, para quem nega a real, ou material), bem como (ii) se adequada às estritas previsões legais aplicáveis (artigo 5º, II e XXXIX, da CR). Tal o fim precípuo do processo judicial: verificação da realidade quanto aos fatos e controle de incidência da lei ao caso concreto. Mais rígida se exprime a tutela judicial quando em jogo a liberdade de ir e vir, a qual só se perde caso feridos valores (bens jurídicos) da mesma órbita constitucional e nos estreitos limites do quanto escrito em lei.
Ora, o procedimento do júri constitui-se em direito individual (artigo 5º, XXXVIII, da CR). O acusado de matar possui, por mandamento constitucional, o direito de ser julgado pelo povo quanto ao mérito da ação penal condenatória. A ideia da soberania de veredito deve, nessa linha de raciocínio, ser compreendida como a impossibilidade de se invadir a competência legal dada aos jurados de entender a verdade quanto ao substrato factual, para reconhecer, ou negar, a materialidade, bem assim a autoria do crime. Jamais poderia significar a inviabilidade de o Judiciário aquilatar a correta, ou incorreta, aplicação da lei ao caso (artigo 5º, XXXV, da CR).
Tal afirmação vê-se demonstrada até mesmo pelos numerus clausus indicados para apelação da decisão do Tribunal do Júri (artigo 593, III, do CPP). O tribunal há de apreciar o descumprimento das regras processuais e do direito material, tanto no âmbito do procedimento, quanto no plano do julgamento, bem assim no tocante à legalidade da sentença.
Ora, conferir à expressão soberania dos veredictos o sentido de imutabilidade de um julgamento em primeiro grau de jurisdição só seria permitido se inexistisse recurso, previsto, para acusação e defesa, em lei (artigo 5º, II e LIV, da CR c.c. art. 593, III, do CPP). E, compreendido o processo penal como instrumento voltado a proteger o indivíduo da indevida coação estatal, não se pode suprimir deste mesmo indivíduo o direito ao controle da legalidade da persecução penal por tribunal, em particular quanto à precisa convergência do mérito às provas legais (art. 5º, LIV e LVI, da CR).
Note-se que esse modo de interpretar o justo não veio a ser violado nem sequer pelas novas disposições do "pacote anticrime" (Lei 12.964/19), as quais conservaram o direito do condenado ao duplo grau de jurisdição, quando houver questão substancial, ou seja, questão quanto à legalidade (artigo 492, parágrafos 3º e 5º, do CPP). Portanto, não se necessita do socorro da doutrina e da jurisprudência que, há anos, assentam o direito de recorrer a tribunal, como direito indisponível, de índole constitucional, a contar do Pacto de San Jose da Costa Rica (artigo 5º, parágrafo 2º, e artigo 8º, 2, letra h, do Decreto 678/92). Ao se tratar do júri, tal direito do acusado se alicerça, a toda evidência, ainda na plenitude do direito de defesa (arigo. 5º, XXXVIII e LV, da CR).
Não convence, por fim, o argumento de que as duas fases judiciais do procedimento do júri (formação da culpa e julgamento do mérito) trariam maior segurança jurídica quanto ao resultado dos julgamentos do plenário. O Judiciário, com todas as vênias, paga as contas da preguiça intelectual de alguns. Este procedimento especial, talvez, pudesse ostentar maior confiança, se levada mais a sério a decisão de pronúncia (artigo 413, do CPP). Enquanto remanescerem as motivações judiciais rudimentares que aceitam o in dubio pro societate para mandar alguém ao julgamento popular, sem filtrar a justa causa para ação penal, não se pode enxergar tanta credibilidade nesta decisão que reconhece formada a culpa por estranha presunção ilegítima (artigo 5º, LVII, e arigo. 93, IX, ambos da CR).
O Supremo Tribunal Federal pode se pautar, por muitas razões (utilitaristas, até), para firmar seus julgamentos. Todavia, bem reconhecida a função de resguardar a Constituição da República, não pode interpretar a legislação processual penal, de forma extensiva e em detrimento dos direitos individuais, sob pena da excêntrica possibilidade de se reconhecer a inconstitucionalidade das próprias decisões.
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