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Devido processo legal e crime fiscal

A comunidade jurídica recebeu a Súmula Vinculante 24 do Supremo Tribunal Federal ("Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no artigo 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/1990, antes do lançamento definitivo do tributo") como solução aos diversos problemas da persecução penal, oriundos do oferecimento precipitado de denúncias atinentes a crime fiscal, antes mesmo da definição do tributo pelo lançamento.


Passados tantos anos de sua aplicação, importante reexaminar aquela afirmação com vistas à melhor aplicação do devido processo legal (artigo 5º, LIV, da CR). Desde logo, cabe observar que o princípio do due process of law interessa ao procedimento administrativo e ao processo civil pertinentes à questão fiscal, com reflexos sobre todo o devido processo penal.


Assim, dois exemplos valem ser ponderados.


Primeiro, o procedimento administrativo-tributário, no qual tão somente se defendeu a empresa, não pode servir como prova penal em face da pessoa física, que dele não participou, nem se viu defendida. A ausência de contraditório retira, de forma apriorística, a possibilidade de se ofertar acusação pública, com base em elementos colhidos sem a ciência do acusado e sem o exercício do direito de contrariá-los (artigo 5º, LV, da CR).


Segundo, a penhora de dinheiro, ou sua substituição por fiança bancária ou seguro garantia (artigo 835, parágrafo 2º, do CPC), pode ter impactos sobre o processo criminal, não podendo o juiz penal deixar de reconhecer efeitos jurídicos desse fato, para fins de suspensão de procedimento penal, para a eventual extinção da punibilidade, ou ainda para a fixação da pena.

Ora, o vínculo do procedimento administrativo e do processo civil com a persecutio criminis mostram a natureza patrimonial dos crimes tributários. Todavia, além disso, cumpre ser observado pelo intérprete das infrações penais dessa espécie o elemento fraude, o qual pode ser consubstanciado em falso documental, ou ideológico (artigo 298 e artigo 299, do CP).


Por óbvio, a Súmula Vinculante 24 deixou claro que não se pode deduzir acusação pública sem o lançamento definitivo do tributo. O lançamento fiscal se mostra necessário para a justa causa da ação penal pública, porém, bom penalista há de considerá-lo necessário, mas insuficiente para o juízo da tipicidade.

Isso porque a própria Súmula Vinculante 24 reconhece cuidar de crime material, o que exige, pelo resultado econômico a ser aferido, exame do corpo do delito para o oferecimento de eventual denúncia-crime, a teor do artigo 158 do Código de Processo Penal.


Além disso, nas hipóteses de falso documental e uso de documento falso realizados como meio para "reduzir e suprimir tributo" (artigo 1º, da Lei 8.137/90), a perícia pode ser imprescindível para a imputação da fraude fiscal (artigo 158, do CPP). Discussões administrativas, e.g., sobre inidoneidade do documento fiscal se exibem inábeis para a prova penal do falso.


O tributo, como elemento constitutivo do tipo, precisa encontrar-se demonstrado para se iniciar a ação penal. Logo, em simples palavras, inexiste automatismo entre o lançamento fiscal, a consequente representação fiscal para fins penais e a denúncia.


O lançamento fiscal importa à justa causa da ação penal, entretanto, a materialidade do crime, de resultado, causador de prejuízo ao erário depende, como se assentou acima, de se provarem, por perícia criminal, o dano e a vantagem indevida do contribuinte, bem assim a fraude, via falsidade documental, se esta última for concausa da conduta típica.


Essa conclusão traz repercussões ao devido processo penal. Outra vez, verifica-se a importância do inquérito policial para a descoberta da verdade e para demonstração da materialidade delitiva. A depender do tipo de autuação fiscal, em particular aquelas fundadas em presunção, parece claro a impossibilidade da propositura da ação penal, alicerçada somente no lançamento fiscal. Também, ainda que superado o voto de qualidade nos julgamentos de auto de infração tributária, o resultado de tal votação importa à análise da certeza jurídica quanto ao tributo, o que elimina relação de causa e consequência entre o lançamento e a denúncia.


Note-se que o inquérito policial, numa visão mais contemporânea, pode interessar à defesa, que deve se utilizar do procedimento investigatório para infirmar conclusões do procedimento administrativo-fiscal, seja no tocante aos fatos, seja no que se refere à materialidade e à autoria delitiva.


Nesse sentido, importante realçar que a denúncia só pode ser intentada a partir dos "indícios da autoria", conjunto de dados objetivos, concatenados e aptos a evidenciar que um ou mais indivíduos (artigo 29, do CP) praticaram o comportamento típico. Ressalta-se, dessa maneira, a impossibilidade de se combinarem apenas lançamento fiscal e contrato social como supostos documentos que bastariam à imputação penal (artigo 395, III, do CPP).


A Súmula Vinculante 24 constituiu-se em manifesto avanço para o Direito pátrio, porque escancarou o mau uso da persecução penal como ferramenta de arbítrio estatal destinada a constranger o contribuinte a não se defender das autuações fiscais, diante do medo do processo criminal. Isso fica claro na leitura do acórdão do HC 81.611 (relator ministro Sepúlveda Pertence, j. 10-12-2003, DJ de 13-5-2005).


Depois de tanto tempo, chegada a hora de interpretá-la em sentido mais atual, preciso em Direito Penal e Processual Penal, reconhecendo-se que não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no artigo 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/1990 sem o exame do corpo do delito, elaborado por perito oficial, em devido procedimento de inquérito policial (artigo 158 e artigo 159, ambos do CPP).


Na linha do pensar de Hanna Arendt, há a missão de construir o Direito, aspecto que impõe aos seus operadores o compromisso de edificarem processo penal mais concernente à liberdade jurídica dos indivíduos (artigo 5º, II, da CR).

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