Em várias nações, avançou-se na especialização do direito penal econômico, área que se volta à repressão das infrações contra a ordem econômica e financeira. Este ramo específico do direito criminal se desenvolveu, a partir da percepção que altas camadas sociais praticam delitos, que merecem maior atenção do Estado. Tais ilícitos penais acabaram por ser conhecidas como "white collar crimes" (crimes do colarinho branco) na expressão cunhada por Edwin Sutherland (White Colar Crime, New York, Rinehart and Winston, 1.961, pág. 31).
Dentre os mais novos crimes econômico-financeiros, está o tipo legal da "lavagem de dinheiro", cuja descrição aqui se fez nos artigos 1º, da Lei nº 9.613. de 03 de março de 1.998. A lei exibe-se o resultado de diversos compromisso internacionais, assumidos pelo Brasil, em especial, o previsto na Convenção contra o tráfico ilícito de entorpecentes e de substâncias psicotrópicas, aprovada em 20 de agosto de 1.988, em Viena (Decreto n° 154, de 26 de junho de 1.991).
A Convenção oferece algumas diretrizes para os países criarem as descrições típicas do delito, apontando duas condutas básicas que merecem previsão: (i) converter ou transferir a propriedade de bem, sabendo que é derivado do cometimento ou da participação em crime, ligado ao tráfico de estupefacientes, objetivando a ocultação ou encobrimento da origem espúria deste; ou o auxílio a algum dos envolvidos na infração penal; e (ii) ocultar ou encobrir a verdadeira natureza, localização, disposição, movimentação e origem da propriedade de bem ou de direitos inerentes a este, ciente que se trata do produto de crime, relacionado ao comércio de drogas (artigo 3°, da Convenção). A leitura das recomendações de Viena faz perceber que esses comportamentos apresentam como traço comum a exigência do dolo, para a prática do injusto. Isto é, reclamam a consciência e vontade de realizar a conduta típica, prevista em lei. Não há, portanto, crime de "lavagem" ou ocultação, na modalidade culposa. Até porque a culpa strictu sensu exigiria tipo específico de negligência, imprudência ou imperícia (art. 5, inciso XXXIX, da Constituição da República c.c. arts. 1º e 18, ambos do Código Penal).
Na lei brasileira, preferiu-se assentar a denominação do tipo "lavagem ou ocultação de bens, direitos ou valores", acompanhando a consagrada expressão norte-americana "money laundering".
Deixou-se de lado, assim, a forma lusitana do "branqueamento de dinheiro", a qual nomeia o resultado figurado, ao invés de designar a conduta. Com a nova legislação, busca-se, a grosso modo, reprimir "o processo, em virtude do qual os bens de origem delitiva delitiva se integram ao sistema econômico legal com a aparência de terem sido obtidos de forma lícita", como explica Isidoro Blanco Cordero (EI delito de blanqueo de capitales, Pamplona, Aranzadi Ed. 1.997, p. 538).
Seguiu-se a tendência mundial de evitar a livre circulação de bens, que se ostentem produto ou proveito de crime, em principal, os interligados aos negócios internacionais de droga. Trata-se da segunda etapa da perseguição do tráfico de entorpecentes, na qual se dá ênfase à criminalização das ações humanas, voltadas à dissimulação do resultado das vendas de substâncias tóxicas (Cf. Lefort, Victor Manuel Nando, El lavado de dinero - mero problema para el campo jurídico. México, Trillas, 1997. p. 9-16).
Dessa forma, o delito da "lavagem" não se confunde, pela própria natureza do bem jurídico tutelado, com a conhecida infração penal da receptação (art. 180, do Código Penal), cujo escopo permanece a proteção ao patrimônio.
Referido tipo visa a resguardar bens jurídicos "supra-individuais", como a ordem econômica e o sistema financeiro (art. 170 a art. 192 da Constituição da República).
No tipo legal, apontaram-se expressamente, os crimes antecedentes que lhe ensejam o cometimento (art. 1º, da Lei nº 9.613/98): (i) de tráfico ilícito de entorpecentes ou drogas afins (art. 12, da Lei nº 6.368/76); (ii) de terrorismo (art. 20, da Lei nº 7.170/83); (iii) de contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção (art. 12, da Lei n° 7.170/83); (iv) de extorsão mediante sequestro (art. 159, do Código Penal c.c. art. 1° e art. 9°, ambos da Lei n° 8.072/90); (v) contra a administração pública (art. 312 e segs., do Código Penal e art. 89 a art. 98, todos da Lei nº 8.666/93); (vi) contra o sistema financeiro (art. 2º a art. 23, da Lei nº 7.492/86); e (vii) praticado por organização criminosa (art. 288, do Código Penal c.c. art. 1º, da Lei n° 9.034/95).[1]
Sem dúvida, a opção por explicitar na lei, taxativamente, quais surgem as infrações penais, precedentes ao crime de "lavagem", se mostrou correta, na medida em que garante maior estabilidade ao juízo da tipicidade, preservando a segurança jurídica. Todavia, com o advento da Lei 12.683/12, preferiu-se pôr fim ao rol fechado de crimes antecedentes.
No plano subjetivo, a enumeração de delitos à ação proibida de ocultar torna necessário verificar se o agente tinha uma ciência de que o bem provinha--do crime antecedente. Por óbvio, o conhecimento da proveniência ilícita, posterior à dissimulação do bem, não autoriza o reconhecimento da infração penal de "lavagem".
É de ressaltar que, novamente, se abandonou a noção de sistema da legislação penal. Pois, a criação isolada do crime de ocultação de bens não resolve as conhecidas falhas dos tipos previstos nas leis anteriores. Nesse sentido, permanecem a má redação dos crimes financeiros (Lei n° 7.492/86), os exageros dos crimes hediondos (Lei nº 8.072/90) e a incerteza, quanto ao conceito legal de organização criminosa (Lei n° 9.034/95) (Sobre o último ponto, ver: "Lei de lavagem de dinheiro pode virar letra morta", Folha de S. Paulo, 4 de abril de 1.998, p. 3-2).
E esse aspecto preocupa, quando da aplicação da novíssima lei, posto que ela nasce dependente de velhos diplomas, correndo o risco de sofrer as mesmas consequências de ineficácia social, padecidas pelas leis anteriores. Há diversas formas comissivas de perpetrar o delito de "lavagem" (art. 1º, caput, parágrafo 1º e 2º, da Lei nº 9.613/98), sendo essas, variações de crime material, com exceção da infração formal de participar de grupo, associação ou escritório, destinado à prática desses ilícitos (art. 1°, parágrafo 2, inciso 11, da Lei n° 9.613/98).
Deixou-se, todavia, um grave problema ao aplicador da lei, ao se afirmar que a denúncia "será instruída com indícios suficientes da existência de crime antecedente" (art. 2º, parágrafo 1°, da Lei n° 9.613/98). Afinal, o crime anterior se apresenta como pressuposto objetivo da "lavagem", surgindo essencial a certeza material da ocorrência do delito base, pouco importando a dúvida, quanto à autoria e à participação.
A falha processual penal, advinda do mau uso de "indícios suficientes", acaba por influir na caracterização da infração penal, porque é assente na doutrina e na jurisprudência que há acessoriedade material entre crime antecedente e consequente (por exemplo, cf: Hungria, Nelson, Comentários ao Código Penal, Rio de Janeiro, Forense, 1.955, vol. VII, p. 314). Em outras palavras, exige-se a convicção de que o fato anterior aconteceu, para se ter prova conclusiva da natureza ilegal do bem. A desculpa de se estar perante a crimes transnacionais não impede que o juiz de direito receba elementos que o convençam do real existir desse delito-base.
Aliás, as decisões judiciais, que negarem o fato precedente, não lhe reconhecerem a demonstração ou descaracterizarem como crime, impedirão a perseguição do acontecimento ulterior de ocultação (art. 386, incisos I, II e III, do Código de Processo Penal). A pretendida autonomia da infração penal não retira a imprescindibilidade do exame do nexo típico entre as ocorrências corretas.
A lei de "lavagem", ao que tudo indica, vai exigir dos operadores da Justiça Penal o devido acatamento aos princípios constitucionais, seja para, a tipificação do delito, seja para a apuração de maternidade e autoria do crime. Caso contrário, mais uma vez estarão em perigo os direitos individuais e, possivelmente, o bom sucesso dessas novas disposições legais.
[1] A Lei nº 12.683/12 eliminou o rol de crimes antecedentes. Hoje basta os bens, direitos ou valores procederem de infração penal.
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