Mais um ano termina. Peregrinações pelos tribunais do país se encerram. De norte ao sul, veem-se debates sobre processo penal e liberdade. Leem-se muitos absurdos nos jornais. Juízes e procuradores ocupam espaço demais na imprensa, com falsos dilemas e com interpretações equivocadas quanto a prisão cautelar e execução da pena. Sente-se certo amargor pelo anacronismo das cortes. Enfim, sobressaltam maus sentimentos em relação a ministros que discursam, sob viés ideológico, em detrimento dos direitos individuais — não há polidez que disfarce o pensamento execrável que manifestam pelos “outros”, os criminosos, os corruptos.
No caminho de construção da jurisprudência, papel importante ocupam os advogados. Magistrados, em boa maioria, gostam de repetições. Traz-lhes conforto e menos trabalho reiterar aquilo que denominam "posição dominante" da turma julgadora, da câmara, da seção, dos tribunais superiores, mesmo quando essa tendência de julgados não se coaduna com a Constituição, com a lei. Essa maneira de agir seria justificada pelo excesso de processos judiciais e denota a preponderância das assessorias de gabinete sobre o magistrado na construção da ratio decidendi em temas importantes — ambas concausas certeiras para o injusto e para o erro judiciário.
Se o quadro emerge de desesperança, sobra ao defensor a técnica, o argumento bem elaborado. Não se luta contra o mau tempo, mas se navega com instrumentos que fazem chegar ao destino. É o estudo sério e cuidadoso que dignifica o advogado. Saber mais expressa um poder que ninguém lhe tira. Até na derrota, nos julgamentos colegiados, o defensor enxerga a hipocrisia dos entreolhares, ou o constrangimento de não lhe encarem, porque todos percebem quem está com a boa razão. Cumpre encará-la, a derrota, mesmo que unânime, como epílogo da vitória a ser conquistada em outro tribunal, em outra discussão. Bom advogado não esmorece, sorri frente a motivações vazias, pois consegue encontrar meios e modos de redarguir o oco, o ridículo, o sofisma, o ilegal de textos e discursos.
Nessa missão de aprimoramento profissional, nada melhor que um livro escrito por quem combina dogmática e experiência. Agora, dado o quadro de enganos dos tribunais, aprendo as lições de Alberto Zacharias Toron na obra Habeas corpus – controle do devido processo legal: questões controvertidas e de processamento do writ. A leitura mostra como o autor combinou sólida cultura jurídica com a ampla casuística que viveu nos julgamentos. Se me permitem o paralelo, trata-se de cirurgião ensinando cirurgia, não um teórico a dissertar sobre objeto intocado, distante. Ele construiu importantes leading cases, logo pode explicá-los.
O problema do cabimento do Habeas Corpus mostra o estado da arte, em termos da proteção — ou fragilidade — da liberdade jurídica do indivíduo no processo penal pátrio. O esforço dos tribunais para restringirem o conhecimento do Habeas Corpus indica o desprezo quanto à origem histórica do instituto, bem assim certa má-fé de alguns que almejam reduzir o espectro de conhecimento do writ para diminuir a carga de trabalho, seja pelo emprego de votos-padrão, seja pela consolidação de um empecilho formal ao ajuizamento de novos remédios constitucionais.
Pense-se no exemplo singelo da decisão de primeiro grau que rejeita a preliminar da inépcia da denúncia (artigo 41 do Código de Processo Penal), quando da apreciação da defesa escrita do denunciado (artigos 395 e 396 do CPP). De um lado, o legislador falhou ao não prever recurso dessa importante decisão judicial que altera o status do inocente para acusado. De outro, firmou-se uma linha de decisões nas cortes no sentido de que questões quanto a falhas da denúncia ficariam superadas depois da prolação da sentença — uma interpretação, também, errada, porém aí firme ela está. Resta à defesa subir com a questão, via Habeas Corpus, aos tribunais, afinal, pululam iniciais acusatórias sem descrição de conduta, ou infiéis aos fatos, consoante apurados no inquérito policial.
Ora, num jogo de palavras que vai da confusão entre preliminar e mérito da causa penal, até a pretensa impossibilidade de análise de provas — outro desacerto que se consolidou — negam-se ou não se conhecem dos Habeas Corpus. Alguns trilham o caminho da suposta precocidade do debate, o que traz sempre a sensação de que ler a denúncia e compreendê-la dependeria de alguma instrução probatória. Outros, de um jeito simplista, confessam que a acusação pública se encontra mal deduzida na inicial, todavia, isso não impede que a defesa a entenda. O ilegal compreensível pode ser aceito, em apertada síntese. Por fim, mais preguiçosos, negam o writ como instrumento apto ao conhecimento da questão. E pronto, um caso a menos.
Toron assevera: “O Habeas Corpus, entre nós, como o Amparo Constitucional na Espanha e no México, tem sido historicamente o grande instrumento que resguarda o cidadão de abusos praticados por agentes do sistema penal, de policiais a juízes, passando por membros do Ministério Público e até agentes do sistema penitenciário. Não apenas a liberdade é protegida de forma imediata, mas, também, de forma mediata, quando se resguarda o devido processo legal.” (Habeas corpus..., p. 51).
Essa passagem e outros trechos do livro, confrontados com a realidade, trazem a clara percepção de que os tribunais não compreendem que o Habeas Corpus se constitui em petição (artigo 5º, XXXV, “a”, da Constituição) que descreve ato ilegal, violador da liberdade jurídica do indivíduo (artigo 5º, II, da Constituição). De modo primordial, protege o ir e vir (artigo 5º, LXVIII, da Constituição), mas resguarda qualquer direito atingido pela persecução penal, observada a subsidiariedade do mandado de segurança (artigo 5º, LXIX, da Constituição). Aliás, a similitude entre os remédios está no fato de serem petições, cujos teor e documentos mostram direitos violados pelo Estado.
A natureza ampla do Habeas Corpus se exibe incompatível com limitações de forma, daí se encontrar a proximidade do exercício desse direito ao direito de petição (artigo 5º, LXXVII, da Constituição), como se vê na hipótese da folha de caderno, assinada pelo preso, com sucinta exposição de ilegalidade a merecer rápida prestação jurisdicional. E, ainda que ausente evidência do ato coator, as informações servem para se trazerem aos autos documentos públicos, aptos à demonstração do que diz a petição. Inscientes da verdade os que pensam serem as informações autorização para dialética com autoridade coatora, ou ver nestas algum traço de contraditório. É determinação judicial para que se esclareçam fatos — afirmados como ilegais e praticados por funcionário público — cuja negativa em responder pode implicar em responsabilidade.
Obtidos dados caracterizadores de ato ilegal, o qual importe em ameaça ou violação à liberdade jurídica, o magistrado deve conceder o writ em velocidade compatível com a natureza célere deste remédio constitucional. Trata-se do meio próprio para se garantir a liberdade sem dilações desnecessárias (artigo 5º, LXXVIII, da Constituição), reconhecendo a prioridade dos direitos individuais em relação ao poder-dever de punir do Estado (artigo 5º, LXVIII, da Constituição).
O dever de o juiz, desembargador ou ministro atuarem sempre — sempre, na dicção do legislador constituinte (artigo 5º, LXVIII, da Constituição)! — na proteção de quem sofre, ou corre o risco de sofrer, com a perda da liberdade no curso de procedimento administrativo ou judicial, acarreta uma especial consciência de tais funcionários públicos qualificados. Longe de procrastinar a prestação jurisdicional, a dinâmica do Habeas Corpus demanda o esforço individual de cada um de compreender os fatos e interpretá-los de forma ampla.
O magistrado que lê a petição de Habeas Corpus não encontra no conteúdo, nem no pedido, o limite de interpretação da tutela que pode conceder à liberdade. Ele age em busca de informações, reconhece ilegalidades e concede direitos ainda que não explicitados claramente no texto. O Habeas Corpus pode ser lido, conforme o modelo de "obra aberta" concebido por Umberto Eco (Eco, Umberto. Obra aberta. Trad. Giovanni Cutolo. 10ª ed.: São Paulo, 2015), pois o interprete da petição vê-se convidado a construir, de modo ativo, o objeto da proteção jurídica ao paciente. A folha de caderno, endereçada pelo preso, na sua singeleza, pode evocar diversos sentidos e trazer as mais diversas conjecturas interpretativas. O receptor da mensagem age para lhe construir o sentido e, dentro do universo de escolhas oferecido pelo sistema de proteção às liberdades (Constituição + leis), assegura o direito ao indivíduo, padecente do ato coator.
Muito ao contrário do que asseveram diversos julgados, a vasta possibilidade de cognição do Habeas Corpus não o desvirtua, mas surge como característica inerente ao instituto no Estado de Direito. Como observa Toron, a grande quantidade de impetrações do writ corresponde ao aumento do número de procedimentos criminais (Habeas corpus..., p. 31 e seguintes), num país que se regozija com o punitivismo estatal. Logo, este incremento não serve como motivo para se privar da prestação da jurisdição àqueles que sofrem com ilegalidades, nem justifica a negação à amplitude de usos que o remédio constitucional possui no direito pátrio.
*Este artigo é dedicado a Alberto Zacharias Toron, em homenagem à sua atuação profissional como defensor, bem assim por sua atividade intelectual e social na proteção de direitos e garantias individuais.
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