Alguns temas, embora ensinados ao aluno de Direito, a prática os coloca no esquecimento. Não parece oportuno, neste texto, indicar as razões. Todavia, a afirmação generalizada de que determinadas regras seriam princípios acarreta certo grau de vulgarização de idéias-chave. No processo penal, esse equívoco se mostra recorrente, como se pode observar nos livros didáticos, nos manuais, nos resumos para concurso.
Pois bem. Pode-se afirmar de conhecimento geral a noção de que a acusação deve ser deduzida de forma clara e precisa (art. 41, do CPP).
A inicial acusatória há de se ostentar compreensível no campo da linguagem, simples na estrutura, fiel na descrição dos fatos, lógica na exposição do ocorrido.
Em outras palavras, o texto da denúncia precisa apontar o fato, quem o praticou, como o fez, quando e onde se iniciou e consumou o crime. Lição secular de João Mendes Junior, que os autores, em coro, repetem ao apreciarem as características da peça acusatória.
Necessário frisar que todos os aspectos factuais, acima indicados, prendem-se por um liame causal que permite inferir ser o acontecimento a consequência de omissão, ou ação dirigida a determinado fim (art. 13 c.c. art. 18, do CP). Nada adianta copiar o tipo delitivo, porque se exige o detalhar a conduta e lhe indicar o resultado típico.
Cabe destacar que a descrição deve ser fidedigna ao que realmente aconteceu, não se permitindo acrescer, ou suprimir, elementos ou circunstâncias, como meio de possibilitar enquadramento diverso da infração penal e maximizar a imputação (com penas mais altas, agravantes, qualificadoras, ou concurso de crimes).
Nem se aceita tal artimanha, como maneira de se fugir do juiz natural (art. 69, do CPP), ou de impedir o reconhecimento de direito do acusado a transação penal, ou suspensão do processo criminal (artigos 72 e 89, Da Lei 9.099/95).
Muitas vezes, observa-se a má-fé processual no oferecimento da denúncia "inflada" como intuito de se obterem medidas cautelares quanto à liberdade (artigos 312 e 319, do CPP), ou quanto ao patrimônio (artigo 125 e seguintes, do CPP). Preponderância do raciocínio singelo — porém, ilegal — de que a acusação atrelada a tipo mais grave facilita a obtenção de liminares em pleitos de prisão cautelar, busca e apreensão, sequestro, arresto, dentre outras.
A inserção de dados e respectivos pedidos — incompatíveis com a verdade advinda dos autos — apresenta-se comportamento seriíssimo que extrapola os limites do processo em si e deve levar à punição administrativa do acusador signatário do documento. Afinal, trata-se de desvio que fere a moralidade da administração pública (art. 37, caput, da CF) e a Lei Orgânica do Ministério Público (art. 43, II, da Lei 8.625/93).
E, com a devida vênia, se praticado o mencionado ilícito em casos de repercussão pública, ou para satisfazer interesse pessoal (e.g., vingança), mais severa há de ser a responsabilização do funcionário público, pois, maior, inclusive, a proporção da contingência para o Estado.
Ora, tal exagero proposital da denúncia pode ser percebido no juízo de admissibilidade da acusação (artigo 395 e seguintes, do CPP), momento inicial do processo-crime em que o juiz penal deve ler o inquérito policial para conhecer o fato, o pretenso crime e a suposta autoria delitiva.
Cumpre ao magistrado examinar as perícias (p.e., exame do corpo do delito), ler depoimentos e interrogatório policial, com espírito de quem almeja desvendar o que ocorreu.
“Vistos” os autos, aí se está apto a fazer a análise da tipicidade formal, contrastando sua conclusão sobre fatos e circunstâncias com o quanto afirmado pela acusação pública.
Também, quando do juízo quanto à formação da culpa, se podem reconhecer omissões, dubiedades, ou imprecisões da exordial acusatória, as quais impeçam o entendimento quanto ao quadro fático, ou apresentem dificuldades para enquadramento legal.
Não se exibe razoável aguardar a decisão atinente à absolvição sumária (art. 397, do CPP) para ler os autos e ter juízo crítico sobre a acusação. Ainda mais absurdo, magistrados utilizarem-se de fórmulas genéricas de recebimento, sem conhecerem dos fatos, sem julgarem acusação inicial e pedidos, relegando tudo para instrução criminal.
Aqui e ali, ouve-se que tribunais estão abarrotados de Habeas Corpus e recursos. Logo não se consegue entender o porquê de manter a burocracia no juízo de admissibilidade, quando deveria ser política judicial o controle ab initio da legitimidade das acusações públicas, por meio de rejeições, ou de determinações de emenda à inicial.
Quem não se encanta com o discurso embasado nos direitos individuais do imputado, pode, ao menos, sucumbir ao pragmatismo de impedir, logo de plano, a continuidade de processos criminais nos quais a denúncia mostra-se imperfeita na forma, ou no conteúdo.
O efetivo controle judicial das acusações públicas implica em menos processos criminais, menos réus, menos trabalho para as cortes, mesmo que alguns teimosos recorram para ver os erros reafirmados em segundo grau de jurisdição. Pode ocasionar aprimoramento da qualidade técnica das denúncias e maior cuidado dos integrantes do Ministério Público, antes da propositura das ações penais.
Por óbvio, o cumprir a lei nesse aspecto significa menos injustiça, menos inocentes acusados - aquilo que importa à sociedade, como um todo.
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