Herdei alguns bons amigos de meu pai, porém, do meu avô Justino, apenas dois, ambos livreiros. Um era Daniel Guedes, cujas monografias jurídicas importadas me endividavam nos tempos de estudante no Largo de São Francisco. O outro, Luiz de Oliveira Dias, me mostrou o universo das obras raras, em particular da literatura portuguesa.
No maior sebo da América Latina, consoante ele se orgulhava da Livraria Ornabi, havia milhares de livros, distribuídos em salas temáticas voltadas a homenagear poetas e escritores.
A inegável origem lusitana ressaltava no sotaque quando dávamos boas risadas. Bem me lembro do octogenário a comentar a coleção erótica de raridades que comprara. Mostrava as ilustrações e ria de reminiscências, nós dois a olharmos, cada um a seu modo, o passar da vida.
Na negociação dos livros antigos, sempre falava do meu avô, do meu pai e me felicitava pela amizade de terceira geração. Fazia-me especiais descontos, recebia cheques para pagamento futuro e, ao final, escolhia um livro que dava de presente.
Era mais que um negócio, constituía um ritual que expressava gosto comum pela literatura e profundo respeito pela tradição. No mês seguinte, eu lá estava outra vez, pronto para repetir a cerimônia da venda e compra.
Aquilo me fazia muito bem. Era terapia aprender com um homem tão bom sobre um mundo tão interessante, como o dos livros antigos. Via a sinceridade da pessoa realmente culta que se opunha à máscara de alguns pretensos intelectuais, professores da Faculdade.
O tempo evidenciou quem tinha razão. Guardei os ensinamentos de “Seu” Luiz, enquanto a memória só me fez esquecer as aulas de falsa erudição, regadas de citações em língua estrangeira - o alemão, para o direito penal, o francês, para o direito privado.
A notícia da morte de Luiz de Oliveira Dias não traz lágrimas, mas carrega a imagem do último ato capaz de explicar o sentido da vida. O livreiro fez da profissão arte e ensino, logo fica ele na memória, minha e de muitos, com gratidão.
Do pó dos livros ao pó que nos aguarda a todos, o livreiro Luiz se sobressalta como um mito. O mito, um aparente nada que é tudo, na percepção de Fernando Pessoa.
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