Antonio Sergio Altieri de Moraes Pitombo
Advogado. Mestre e Doutor em D. Penal (USP). Pós-Doutor pelo Ius Gentium Conimbrigae (Univ. de Coimbra)
Não sei se acredito em vidas passadas. Mas existem pessoas que nos convidam a romancear sobre a amizade, bem assim a conjecturar sobre o longo convívio, como se tivéssemos nos conhecido em outros períodos da história. Com René Ariel Dotti sempre foi assim. No imaginário, nosso vínculo nasceu no século XVII e vivíamos em aventuras e duelos como personagens de Alexandre Dumas.
Nunca vi advogado mais empolgado com a defesa dos clientes, nem alguém tão indignado com as arbitrariedades. Era educado, porém firme. Diversas vezes, pedi que me ajudasse em casos importantes. Sofremos e comemoramos juntos, nas muitas causas nos tribunais. Ele me ensinou a perseverança: não há derrota definitiva, apenas postergação da justiça.
Esse modo de pensar era sentido pelo cliente desde a primeira reunião. Ele logo compreendia o ponto que daria ao caso uma nova perspectiva, indicando a mudança da estratégia e discurso. Desse modo, acalmava o sofrimento do réu, a começar, com a esperança. Estudado o processo judicial, pronto estava para escolher o mantra da defesa: argumento irrefutável que ele repetia, diversas vezes, de diferentes formas, com muita elegância.
No Supremo Tribunal Federal, quantos foram nossos despachos. Tenho passagens de muita gentileza nos gabinetes com ele. Guardo na memória duras cobranças que o tempo de profissão permitia que ele fizesse aos Ministros. Não rogava por nulidade, ou absolvição, exigia a legalidade, o justo.
Essa capacidade de encontrar a melhor alegação da defesa era produto da sua impecável formação acadêmica e irrefutável cultura literária. Professor de Direito Penal, escreveu diversos livros, muitos artigos. Era confiante na possibilidade da melhoria do sistema de penas, na evolução da execução da pena privativa de liberdade, na humanização dos cárceres.
Essa perspectiva de René Ariel Dotti quanto às sanções criminais vê-se a marca na Reforma Penal de 1984, quando ele, na qualidade de membro da Comissão, laborava pela criação de dispositivos atinentes à individualização da pena e à progressão do condenado. Recordo-me das centenas de bilhetes que mandava a Miguel Reale Junior, Ricardo Antunes Andreucci, Rogério Lauria Tucci e a meu pai, para reforçar suas razões e aspirações na proteção jurídica do preso por sentença penal transitada em julgado.
A notícia de sua morte ontem chegou em hora ruim. Fazia algum tempo que não falávamos neste momento complicado que todos vivemos. Senti saudade do seu sotaque, de seu jeito de iniciar a conversa comigo. Nossas risadas vieram e voltaram na lembrança. Pensei que conheço hoje poucos parecidos com ele, intransigentes frente ao iníquo, ao abusivo da Justiça Criminal.
Da tristeza com a perda do mestre e amigo, só posso sair usando o método que ele me ensinou. Ver a vida como bom romance, filme ou peça de teatro, com a crença num fim mais correto, talvez feliz.
Enfim, sem o esgrimista da liberdade, preciso continuar na luta a desafiar aqueles que dela desconfiam como valor universal. Para isso, peço ao Infinito que permita que René Ariel Dotti seja para mim similar a Cyrano de Bergerac. Necessito manter em espírito nosso entusiasmo recíproco pela defesa, por meio das suas mais lindas falas.
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