Num país acostumado com clientelismo e corrupção, há muitas dificuldades ao se querer regular a atividade do Estado. Ninguém, assim, pode acreditar que a criação de uma lei tenha o condão de pôr fim a condutas indevidas dos administradores públicos.
Esse diagnóstico não significa desesperança, porque a existência de Lei de Responsabilidade Fiscal - com previsão até mesmo de responsabilidade penal dos governantes - por si só evidencia o desenvolvimento do Brasil, numa perspectiva de Estado Democrático de Direito.
Como se sabe, nos regimes autoritários, a relação das pessoas com os governantes alicerça-se no medo e na admiração, fundados em convicções coletivas, ou na figura atraente de um líder.
Já, nos regimes democráticos, a legitimação dos governantes se mostra racional, o que faz com que o respeito às leis seja um valor essencial entre governo e sociedade. Desse modo, a busca de punição dos funcionários públicos que violam a lei - por consequência, a confiança dos governados - apresenta-se como bom indicativo da evolução da democracia brasileira e de nosso ordenamento jurídico.
As pessoas, entretanto, se esquecem de que a tutela da administração pública não se limita ao Executivo, mas se estende ao Legislativo e ao Judiciário. E, não poderia ser diferente, afinal, a divisão do poder estatal não significa que tanto Legislativo como Judiciário deixem de praticar atos de administração. No âmbito da responsabilidade fiscal, deseja-se que a gestão financeira e orçamentária das três faces do Estado respeite ao princípio da legalidade de forma plena, especialmente, no que tange à fiscalização contábil, financeira, orçamentária e patrimonial.
Em outras palavras, o administrador público não pode descumprir as leis atinentes ao plano plurianual, às diretrizes orçamentárias e aos orçamentos anuais, bem como tem de respeitar as normas de gestão financeira e patrimonial da administração direta e indireta.
Nessa perspectiva, a par dos conhecidos peculato (art. 312), concussão (art. 316) corrupção (art. 317) e advocacia administrativa (art. 321) do Código Penal, a Lei de Responsabilidade Fiscal introduziu novos crimes contra a administração pública, destinados a antecipar a tutela jurídica a condutas perpetradas antes mesmo de se consumar algum prejuízo ao patrimônio público.
Com tais infrações penais, o legislador almejou resguardar os interesses públicos, adiantando-se à ocorrência de dano ao Estado. Daí porque os simples "ordenar" ou "autorizar" podem acarretar a assunção de responsabilidade pelo administrador público. O abuso de vocabulário técnico em matéria de finanças públicas, com o emprego de expressões como "restos a pagar", "antecipação de receita orçamentária", dentre outras, dificulta a aplicação da parte penal da lei.
Isto em razão de se dever valorar, no curso de eventual investigação criminal, o conhecimento que o agente detinha dos fatos e os fins pretendidos, no momento da prática do ato administrativo.
No caso dos municípios, em particular os mais pobres e distantes, imagina-se o quão penoso se pode mostrar a perquirição sobre o que o prefeito entendeu e teve intenção de fazer ao aceitar a realização de determinado gasto.
Ora, promotores de justiça e magistrados precisam estar conscientes de que a eficácia da lei independe da vontade individual e que as falhas do legislador não se suprem por meio de injustiças nos casos concretos. Ambos, em verdade, têm de aceitar que a Lei de Responsabilidade Fiscal, por si só, representa avanço na proteção do dinheiro público, mas não podem transformá-la em instrumento para estigmatizar governantes em situações onde não existir prova do crime.
Outra vez, a solução dos dilemas do aplicador do direito se atinge mediante a análise da Constituição da República, pois, só com o texto constitucional se podem aquilatar os valores que devem preponderar no embate entre a liberdade e os demais bens jurídicos constitucionais, em cada causa trazida a julgamento.
As reconhecidas mazelas da administração pública jamais podem se tornar motivo suficiente para que outros princípios fundamentais sejam postos de lado, sob o falso argumento de se precisar prender corruptos a qualquer custo. O desenvolvimento da tutela da administração pública não prescinde jamais do pleno reconhecimento dos direitos individuais, o que, de modo algum, significa aceitar o desrespeito à coisa pública.
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